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Atualizada em: 18.09.2024

2 de agosto
’s POV

— Ito, cadê seu relatório?! — Exigiu o homem aparecendo à minha frente. Contive o impulso de rolar os olhos antes de responder. Boa tarde pra você também.
— Estava agora indo te entregar, chefe. — Respondi, ainda desacostumada com a voz masculina atualmente saindo da minha garganta. — Mas pra resumir, a polícia e os heróis têm fechado o cerco cada vez mais. São poucos os lugares que ainda dá pra gente atuar com gente que não é dispensável. Três ou quatro só, esses aqui.
As palavras deixaram um gosto amargo na minha boca. Eu odiava falar sobre vidas como se fossem descartáveis e odiava ter que fingir não me importar. Meu consolo era saber que estaria ajudando mais que prejudicando a longo prazo.
Entreguei-lhe a pasta que eu carregava e o vi abrir para verificar os papéis sem nunca melhorar a carranca. Ele estalou a língua em descontentamento, claramente irritado com o andamento dos negócios nos últimos tempos.
— Tá. A lista de agências nessa área tá aqui?
— Na última página. — Por mais que eu odiasse certas partes do meu trabalho atual, eu era eficiente. Tinha que ser, ou me tirariam daqui e todo o esforço teria sido por nada.
Ele assentiu, resmungando algo que não entendi. Em seguida, falou de forma clara:
— Quero você de prontidão no armazém até de noite. O inútil do Yagami tem mais documento pra mim e eu quero aquela merda na minha mão o quanto antes, vai cobrar ele assim que o filho da puta aparecer.
— Sem problemas.
— Some da minha frente então, tá esperando o quê?
Não precisei que ele falasse duas vezes, virando e rapidamente saindo do prédio, respirando aliviada assim que senti o sol no meu rosto.
Eu precisava ser rápida e discreta agora. Percorri as ruas que já tinham se tornado familiares até encontrar o restaurante mexicano, verificando que não tinha sido seguida antes de entrar e me enfiar na cozinha pouco movimentada. Gomez, o dono do lugar, ergueu o olhar da chapa onde fazia tortilhas e sua postura relaxou ao ver que o intruso era eu.
— E aí, Lua?
— Boas notícias, mano. Mas preciso usar o telefone.
— Tuas coisas tão lá atrás. Preparo teu almoço já?
Sorri genuinamente. Ele era um cara legal. Eu precisava voltar aqui quando essa história acabasse e eu pudesse voltar a ser eu mesma.
— Você é um anjo. Me faz o de sempre que eu já venho.
— Pra já.
Me esgueirei até o banheiro dos funcionários e fechei a porta. Subindo na privada, me estiquei para alcançar a mochila escondida no tubo de ventilação, a encontrando exatamente onde eu havia deixado, e suspirei de alívio. Peguei o celular que mantinha nela e liguei para o primeiro contato, sendo atendida no terceiro toque.
— Alô?
— Sra. Beifong, é a Moonlight. Tenho novidades. — A sra. Beifong era a minha verdadeira chefe, embora pouquíssimas pessoas soubessem disso. Bom, pouquíssimas pessoas sabiam da minha existência no geral, e menos ainda sabiam quem eu realmente era.
— Já? — A voz dela soou surpresa. Nossa previsão era que eu fosse demorar muito mais para conseguir as informações que viera buscar. — Devo esperar um relatório?
— Talvez ainda não. Mas o Takahashi me mandou pro armazém hoje, disse que é pra eu ficar lá até de noite esperando uns documentos que ele quer. Grandes chances de eu conseguir tempo pra bisbilhotar pelo menos um pouco. No mínimo eu consigo te passar o processo pra entrar lá.
— Muito bom, muito bom. Isso deve adiantar pelo menos um pouco o cronograma. Quem sabe a gente consegue te tirar daí até junho.
— Tomara. Andar por aí nesse corpo não é muito confortável. — Escutei a gargalhada da senhora do outro lado da linha e ri baixinho. — Agora preciso ir. Só liguei mesmo pra avisar.
— Tá bom. Boa sorte.
— Obrigada.
Desliguei com um suspiro e guardei as coisas de volta. Aproveitei que já estava lá para lavar o rosto, franzindo o cenho para o rosto estranho que me encarava de volta no espelho. Bom, nem tão estranho, uma vez que eu já estava usando ele há uns três meses. Ao fim do ano pelo qual estava previsto que eu ficaria assim, já seria só mais uma imagem familiar.
— Tomara que a sra. Beifong esteja certa e essa missão acabe antes do previsto. Tô precisando de umas férias — murmurei pra mim mesma antes de assumir novamente a postura do homem que eu estava personificando e voltar para fora. Ainda tinha muito trabalho a fazer antes de poder ter férias.


3 de dezembro
’s POV

Olhei ao redor para garantir que não havia mais ninguém no corredor. Eu precisava descobrir o que ficava naquela sala que Takahashi mantinha tão escondido. Nem câmeras tinha lá dentro, mas era importante, eu tinha certeza. Depois de quatro meses tendo acesso àquele armazém, eu não tinha nem ideia do que poderia ser.
Com a chave que Beifong tinha me dado, destranquei a porta de metal e a fechei rapidamente atrás de mim, mas em um milhão de anos, eu não imaginaria encontrar o que me encarava de volta. Pisquei algumas vezes, tentando assimilar a imagem. Dei um passo à frente e a criança se encolheu.
— Hey, tá tudo bem. Eu não vou te machucar. — Ergui as mãos, retrocedendo em direção à porta para tentar provar que não era uma ameaça. Sua expressão não parecia muito convencida, seus olhinhos verdes seguindo meus movimentos. — Como você se chama? Meu nome é .
Isso despertou curiosidade.
— Mas você é homem.
— Posso te mostrar um segredo? — sussurrei e recebi um balanço de cabeça mínimo em confirmação.
Fechei os olhos então, parando de lutar contra o repuxo constante da pele do meu rosto. Senti os ossos mudarem de tamanho e se reajustarem, o couro cabeludo coçando até o cabelo roçar no meu pescoço. Quando abri os olhos outra vez, minha pequena descoberta me olhava com surpresa.
— Esse é meu rosto de verdade. Isso aqui — apontei para meu corpo, que eu não havia retrocedido — é como se fosse uma fantasia que eu faço com a minha Individualidade. Mas não conta pra ninguém, tá?
— Você não veio me buscar, então? — Sua vozinha e jeito de falar me faziam chutar que tinha por volta de 5 anos, embora fosse uma criança pequena. Mas a quebra em “buscar”, somada às reações, me diziam que tinha passado por um inferno muito maior que sua pouca idade. Meu coração partiu antes mesmo de eu descobrir seu nome.
— Não, não vim te buscar. Na verdade, nem era pra eu ter conseguido te achar. — Seus ombros relaxaram um pouco. — Como você se chama?
Após alguns segundos de hesitação, obtive resposta:
— Hayato.
— E por que você tá aqui, Hayato?
— Eles não conseguiram pegar meu pai, então pegaram eu.
Abri a boca para responder, mas um relógio apitou na parede e Hayato arregalou os olhos com medo. Sem parar para pensar em qualquer consequência, me lancei para o canto da sala onde havia um armário, abrindo e tirando roupas que pareciam ser dele.
— Você guarda mais um segredo? — Pedi, minha voz mudando da minha para uma mais fina, mais baixa e muito mais infantil. Meu corpo inteiro repuxava e se adaptava à forma que eu agora tentava lhe dar, e eu precisava ser rápida.
— O que… o que você tá fazendo?
— O relógio quer dizer que alguém vem te buscar, certo? — Ele assentiu confuso. — Não posso te tirar daqui agora, mas posso ajudar. Tem alguma coisa que eu precise saber sobre quando te buscam? Alguma coisa que você faz que eles vão saber se não for você?
— Não, eu não falo e também não sei fazer o que eles querem. Mas eles vão te machucar! — Exclamou ao me ver transformada em uma cópia sua, vestindo as roupas que eu havia pego e colocando as minhas dentro do armário.
— Hayato — peguei as mãos do menino, que agora eram do mesmo tamanho das minhas. Eu não incorporava uma criança havia muito tempo — É isso que eu faço, meu trabalho é proteger as pessoas. Você não precisa se preocupar comigo, tá bom? Eu vou ficar bem, prometo. E vou dar um jeito de te tirar daqui o mais rápido possível, pra que eles nunca mais te machuquem. Agora eu preciso que você se esconda, tá? Ninguém pode ver que tem dois de você.
— Tá bom — respondeu após um segundo de hesitação, seus olhos estudando o meu rosto.
Ele se esgueirou para dentro de uma outra parte do armário agora fechado bem a tempo de a porta abrir com um estrondo.
— Hora de ir, moleque. Será que hoje você vai parar de ser idiota e me dar o que eu quero? — perguntou uma mulher que eu não conhecia.
Obedecendo à informação que Hayato havia me dado, não respondi, apenas a encarando com medo. Eu tinha dito a verdade ao menino sobre esse ser o meu trabalho, mas isso não significava que eu não estava apavorada com o que podia acontecer comigo, ainda mais nesse corpo tão pequeno e frágil. Agora que eu o copiara, conseguia perceber que Hayato não estava recebendo comida o suficiente, e provavelmente tinha lesões que não haviam sido tratadas adequadamente, o que fazia meu sangue ferver de raiva e meu coração se apertar.
A mulher grunhiu, irritada com minha falta de resposta, e seus cabelos voaram na minha direção, se enrolando até me prender. Me debati, mas não tinha força o suficiente pra que isso adiantasse de muita coisa.
— Vamos logo que eu não tenho o dia todo. E para de tentar escapar, ou vai sobrar pra sua irmãzinha. — Congelei imediatamente. Irmãzinha? Havia mais uma criança ali? Uma ainda menor e mais frágil que Hayato? — Melhor assim.
Me deixei levar sem mais resistência, olhando para trás e finalmente notando de verdade certos objetos do “quarto”, como o colchão em cima do qual havia o que eu tinha assumido ser uma coberta enrolada, mas onde agora via movimento. Meu Deus, tinha um bebê ali?! Que tipo de monstruosidade estava acontecendo naquele galpão?
Observei atentamente o caminho que ela fazia ao me carregar, memorizando cada curva e tentando me dissociar do que sabia que estava prestes a acontecer.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔


Após o que eu imaginava ser aproximadamente três horas, fui jogada de volta no “quarto” das crianças, minhas bochechas manchadas pelas lágrimas e o pequeno corpo que eu usava no momento coberto de hematomas. A mulher queria que Hayato fizesse algo com sua Individualidade, que eu supunha ser relacionada à manipulação de vetores pelo que pude observar, e apertava seus cabelos em um abraço de cobra em volta dos bracinhos, pernas e tronco quando ele não fazia nada, parando apenas quando estava prestes a causar uma fratura. Não me pareceu que o tratamento que eu havia recebido fosse diferente do normal, a julgar pelas reações dela enquanto me torturava, então não me parecia que eu houvesse sido descoberta.
— Espero que aprenda sua lição e me obedeça de uma vez, moleque. Tem mais quatro dias até nossa próxima aula. — Advertiu antes de bater a porta e trancá-la.
Gemendo baixinho, me apoiei em um dos braços para levantar de onde eu havia aterrissado no chão. O verdadeiro Hayato saiu de dentro de um minúsculo banheiro que eu não tinha notado mais cedo, carregando uma toalha molhada.
— Eu disse que iam te machucar. A toalha tá gelada, melhora um pouquinho. — Ele sentou-se ao meu lado no chão e me estendeu o tecido, que aceitei, colocando contra minhas costas e fazendo uma careta.
— Hayato, isso acontece sempre? — Ele assentiu, desviando o olhar. — Tá legal, chega. — Com dificuldade, me levantei e fui até o armário, pegando minhas roupas. Tirei as roupas de criança e vesti as minhas, engolindo os grunhidos que ameaçavam escapar dos meus lábios. Assim que estava coberta, permiti que meu corpo inteiro voltasse à forma original. — Pu… — Engoli o palavrão. Metamorfose normal era um processo levemente incômodo, mas quando o corpo estava machucado era um porre, tudo doía dez vezes mais, e as regiões machucadas pareciam estar sendo socadas. Me recostei contra a parede, ofegante. Podia sentir os olhinhos dele em mim enquanto eu me recuperava. — Okay, agora eu preciso que você me responda algumas coisas.
Abri os olhos para encontrar o olhar dele. Sua expressão era resignada, com um cansaço que eu poucas vezes havia encontrado mesmo em adultos. Eu sabia que não o ter encontrado até agora não era culpa minha, mas não conseguia deixar de pensar em quanto sofrimento poderia ter sido evitado se eu tivesse invadido esse quarto antes.
— Tá bom.
— Aquela mulher. Ela disse que você tem uma irmã.
Ele assentiu, andando até o colchão e sentando ao lado da coberta.
— Essa é a Suki. Trouxeram ela também quando me pegaram, acho que pensaram que podia funcionar com ela se eu não servisse. — Me aproximei, vendo a pequena menina deitada lá. Ela estava acordada, os olhos do mesmo verde do irmão me encarando com curiosidade. Assim como ele, ela parecia pequena demais, mas eu chutaria que ela tinha por volta de um ano. Não deveria estar deitada enrolada em cobertas, mas dando seus primeiros passos desajeitados por aí.
— Você sabe quantos meses ela tem, Hayato?
— Não sei quanto tempo faz que a gente tá aqui. Ela nasceu perto do natal.
Engoli em seco.
— Você sabe que mês era quando te pegaram?
— Junho ou julho? Não sei. — Hayato baixou os olhos, brincando desanimado com a irmã. Quando falou de novo, sua voz era tão baixa que quase não ouvi: — Foi pouco depois do aniversário da mamãe.
Seis meses. Essas crianças estavam aqui, em cárcere privado, mal nutridas, sem cuidado nenhum, sob torturaseis meses. E muito provavelmente tinham presenciado a morte dos pais, considerando o que eu sabia sobre como Takahashi fazia negócios. Eu precisava acabar com isso.
— Nos próximos dias, alguém vem aqui de novo?
— Só pra deixar comida. Ela vem me buscar só quando fala mesmo, pra dar tempo de eu melhorar antes de fazer de novo.
— É sempre assim?
— É.
Suspirei. Eu precisava sair dali ou iam dar pela minha ausência, mas não queria deixar os irmãos sozinhos de jeito nenhum.
— Olha aqui pra mim. — Pedi — Eu sei que você acabou de me conhecer e não tem motivo nenhum pra confiar em nenhum adulto que aparece aqui. Mas eu vou te fazer uma promessa, Hayato: eu vou tirar você e sua irmã daqui, e vocês nunca mais vão ter que voltar pra uma situação dessas. Ok? Eu prometo. Não vai ser hoje, porque eu preciso descobrir um jeito de fazer isso primeiro, mas vai ser logo.
— Por que você liga? — perguntou baixinho.
— É isso que eu faço. Eu sou uma heroína profissional, meu trabalho é exatamente ajudar as pessoas. Por causa da minha Individualidade, eu me escondo no meio dos vilões pra descobrir como derrotar eles, é por isso que eu to aqui. E vocês são só crianças.
— E o que você vai fazer?
— Dar um jeito de tirar você e a Suki daqui em segurança. Mas provavelmente vou precisar da ajuda de outros heróis, por isso não consigo levar vocês hoje. — Com dor no coração (e no corpo também), me transformei de volta em Ito, minha identidade para a missão atual. — Agora eu preciso ir, mas eu volto, tá?
— E como eu vou saber que é você?
Sem hesitar, ergui minha camiseta e apontei para a tatuagem de lua estilizada nas costas.
— Essa tatuagem é minha mesmo, do meu corpo de verdade. Eu te provo que sou eu mostrando ela, pode ser?
Após alguns segundos em que ele observava o desenho, Hayato assentiu. Arrumei a roupa outra vez, peguei a chave que Beifong havia me dado e sai do quarto, deixando meu coração com os dois irmãos.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔


4 de dezembro

Bati a porta, marchando para dentro da sala sem a mínima cerimônia. Não era como se a sra. Beifong fosse ser surpreendida pela minha entrada. A mulher podia ser idosa e cega, mas ela usava sua Individualidade para enxergar e via perfeitamente bem, muito melhor que pessoas cujos olhos funcionavam, inclusive.
— Bom dia pra você também, Moonlight. Posso saber pra que você chegou batendo portas e pisando duro desse jeito?
— Eu quero a operação do Takahashi fechada. — Pausei por tempo o suficiente para a mulher virar-se para mim e arquear uma sobrancelha. — Agora, Beifong.
— Explique-se. — Seu tom duro me fez respirar fundo e me recompor. Eu estava desesperada, mas ela nem sequer sabia o que estava acontecendo, e eu já estava faltando com o respeito.
— Eu entrei ontem na sala que ele mantém trancada. São crianças. — Apoiei meus braços no encosto da cadeira, deixando a cabeça cair em derrota. — Eles sequestraram duas crianças, muito provavelmente assassinaram os pais deles, e estão mantendo eles lá.
— E o que mais você quer que eu faça? Já coloquei você lá justamente pra gente derrubar eles, mas você sabe que tem um protocolo.
— Foda-se o protocolo! Você não tem noção do que estão fazendo com eles! Seis meses, Beifong! Essas crianças foram sequestradas no meio do ano, uma delas nem um ano tem ainda, eles estão jogados num quarto trancado no subsolo sem o mínimo! Sem falar no que estão fazendo com o mais velho…
— Moonlight, eu sei que parte do seu trabalho é resgate, mas a maior parte dele ainda é se infiltrar sem ser descoberta para conseguir provas o suficiente pra tirar esse povo de circulação. Não pode simplesmente decidir que…
— Presta atenção! — Interrompi, agarrando uma das mãos dela e pressionando contra meu pulso. — Presta atenção na quantidade de machucados no meu corpo, eu sei que você consegue sentir! Eu tomei o lugar do irmão mais velho ontem depois que achei eles, estão torturando um menino de 5 anos! E tudo porque querem que ele faça algo com a Individualidade que ele nem sabe fazer! E isso é recorrente, repetem esse processo a cada 4 ou 5 dias, dando só o mínimo de tempo pra ele se recuperar antes de machucar ele todo de novo! Então me desculpa, foda-se o protocolo! A gente pode não ter a quantidade de provas que queria, mas temos o suficiente pra acabar com essa putaria. — Parei por um segundo para respirar e então continuei: — Eu quero aquelas crianças fora de lá até o Natal. Ou você manda a cavalaria pra me ajudar, ou eu vou resolver sozinha. A escolha é sua.
Com isso, marchei para fora do escritório sem esperar uma resposta. Mais ou menos na metade do caminho entre lá e a saída, esbarrei em alguém, arfando de dor por conta de todos os machucados recentes.
— Desculpa. Eu te machuquei? — perguntou uma voz profunda em algum ponto acima de mim, mas não respondi imediatamente. Senti então uma mão gelada encostar no meu ombro para tentar chamar minha atenção.
Quando olhei pra cima, os olhos heterocromáticos que me encaravam de volta eram únicos o suficiente para serem reconhecidos de imediato.
— Shoto-san. Ahn, não, não foi você que me machucou, não se preocupe.
Shoto era dono da agência para a qual eu trabalhava atualmente, apesar de tecnicamente não ser meu chefe. Ele abrira uma divisão interna para heróis e missões que pareciam muito mais com espionagem do que com o trabalho comum de um herói profissional, e contratara a sra. Beifong para comandar essa parte sem interferência dele. Mesmo assim, às vezes aparecia por ali em reuniões, só para se manter atualizado do que estava acontecendo. Isso tudo, claro, sem contar que qualquer um que pusesse os pés no Japão ou soubesse o mínimo sobre a atual geração de heróis nacionais conhecia o rosto dele (e uns 70% tinham no mínimo uma queda por ele). Ainda assim, eu não esperava encontrá-lo. Ele franziu o cenho levemente.
— Tá tudo bem?
Puxei as pontas das mangas da minha blusa, inconscientemente tentando esconder os hematomas.
— Não se preocupe, foi só um imprevisto.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Suas missões não costumam ter imprevistos que te deixam nesse estado.
— Como você sabe das minhas missões? — perguntei surpresa. Ele abriu um sorriso mínimo e eu quase engasguei. Tá, ok, crush do país todo justificado.
— Você trabalha pra Beifong, mas a agência ainda é minha. Especialmente quando trazemos heróis de fora do Japão, gosto de saber o que acontece.
— Bom, nesse caso talvez seja interessante pedir pra ela te passar o que eu vim falar. Eu mesma diria, mas preciso ir. Obrigada pela preocupação, Shoto-san, mas eu vou ficar bem.
Curvei a cabeça para ele e fui embora.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔


15 de dezembro

— Mas será possível que você não vai aprender nunca, garoto?! — Ela bufou. — Sua sorte é que ainda não dá pra saber a Individualidade da sua irmã, ou eu já teria me livrado de você.
Bufei ao ouvi-la fechar a porta. Eu havia passado os últimos doze dias investigando, mas não tinha conseguido descobrir o nome da desgraçada. Ela, assim como as crianças, devia estar acima do que Takahashi permitia que eu soubesse.
— Quer a toalha? — Ofereceu o verdadeiro Hayato saindo de seu esconderijo dentro do armário. Neguei com a cabeça.
— Hoje eu vim preparada, mas obrigada. — Com dificuldade, mas menos do que nas últimas vezes, me levantei e fui pegar minhas roupas. — Conseguiram comer?
Ele assentiu.
— A Suki gostou da papinha que você trouxe.
— E você, comeu também? — Esperei ele confirmar antes de me transformar em Ito, arfando. Logo em seguida, peguei o analgésico que havia trazido e engoli, torcendo para fazer efeito rápido. — Desculpa não ter conseguido tirar vocês daqui ainda. — Respirei fundo, verificando que a comida que eu havia trazido era o suficiente para os próximos dias e estava escondida o bastante.
Eu estava fazendo meu máximo para facilitar a vida de Hayato e Suki enquanto não conseguia resgatá-los. Ainda não tinha tido resposta da Beifong sobre encerrar a operação, mas eu não podia ficar parada, especialmente sabendo que havia a chance dessa resposta nunca vir. Eu estava a um passo de implorar para alguns amigos e antigos colegas de trabalho virem do Brasil me ajudar, porque seria impossível tirar os dois dali em segurança sozinha. O armazém estava sempre cheio, e, por mais que Suki fosse pequena e ignorada o suficiente para eu conseguir levá-la para fora despercebida, Hayato não era, e eu jamais arriscaria levar um irmão sem o outro.
Então desde que os encontrara, eu vinha tomar o lugar dele nas “aulas”, como nossa torturadora as chamava, trazia comida e ajudava a cuidar de Suki como eu podia. Estava longe de ser o suficiente, e eu estava sempre tensa, preocupada que alguém viesse buscá-lo enquanto eu não estava prestando atenção, ou percebesse que ele não estava coberto de hematomas frescos, mas era o que eu podia fazer no momento.
Hoje mesmo já havia dado um banho em Suki, aplicando os remédios e pomadas que ela claramente precisava. Eu podia não ser mãe, mas tinha um irmão mais novo e vinha de uma família grande, então eu tinha uma boa noção das necessidades de um bebê.
— Ok, eu preciso ir antes que alguém perceba que eu sumi. Não esquece de comer também, viu? — Hayato assentiu e eu fui embora, trancando a porta outra vez. Ouvindo passos, entrei em pânico momentaneamente.
Não era pra eu estar ali, não podia ser pega. Como eu ia tirar as crianças de lá se fosse descoberta? Decidindo rápido – e sabendo que talvez não fosse funcionar – fingi estar apenas passando de um corredor pro outro, indo em direção ao som.
— Ito? Que porra você ta fazendo aqui? — Yagami perguntou com as sobrancelhas erguidas. Ainda bem que era só ele.
— Revirando esse armazém atrás de você, seu idiota. Takahashi mandou você encontrar ele no escritório, ele tá puto. Disse que era algum relatório errado, mas não me importa. Meu trabalho é te mandar pra lá.
— Puta merda.
— Corre, porque ele tava com cara de que cabeças iam rolar. — E vindo dele, a frase era bem literal mesmo.
Ao ver o homem correndo na direção da saída, agradeci mentalmente a qualquer entidade que pudesse estar ouvindo. Yagami não era o cara mais inteligente do mundo, e eu realmente deveria estar procurando por ele para dar o recado de Takahashi – o que era tecnicamente o meu trabalho. Segui na mesma direção, porém com mais calma, e fui embora. Meu turno tinha acabado, pelo menos por hoje.
Chegando no apartamento que eu estava usando, tirei a roupa pesada e permiti que meu corpo voltasse ao normal com um grunhido. Para todos os efeitos, ninguém que me conhecia como podia saber a aparência que eu usava durante uma missão, e ninguém que me conhecia como Ito podia me ver como em momento algum. Mas o apartamento me dava privacidade o suficiente para não usar o disfarce, pelo menos por algumas horas. Após tomar um banho quente, colocar um pijama confortável e me enfiar debaixo das cobertas, peguei o celular – o meu celular – e liguei para o meu irmão. Ele atendeu após alguns toques, seu rosto aparecendo na tela. Não pude deixar de sorrir.
— Hey.
— Hey. Tá tudo bem? Sua missão acabou já?
Suspirei.
— Não, nem perto.
— Ué. — Liam franziu o cenho. — Aconteceu alguma coisa? Você não costuma ligar no meio de uma missão.
— É, eu sei. Aconteceram algumas coisas sim, mas nada que eu possa falar, e eu só… precisava falar com você um pouco. Lembrar do mundo real, ver que você tá bem. — Sua expressão suavizou.
— Posso te entediar com as histórias desse semestre da faculdade. Já acabou, mas a gente quase não se falou esses meses todos.
— Eu adoraria. Quero saber também o quão surtados a mamãe e o papai estão com o natal chegando.
— Numa escala de zero a dez? Onze. Igual todo ano. — Nós rimos juntos.
Uma voz familiar apareceu logo em seguida:
— É a ? — Liam assentiu, virando o celular para abrir espaço, e logo nossa prima apareceu na imagem — Oi! Nossa, você ligando tão cedo? Que milagre é esse?
— Lembra que eu tô no fuso oposto, pra mim são 10 da noite. — Eu ri, e ela bateu na própria testa.
— Verdade, né. Eu nunca sei onde você tá direito.
— Sem planos de sair do Japão tão cedo. Mas vocês estão fazendo o que juntos tão cedo? Achei que estavam de férias.
— A gente tá, mas tiramos o dia pra comprar as coisas que faltam pro natal. O que você vai fazer, aliás? Já sei que você falou pra mamãe que não consegue voltar pra passar com a gente.
— É, sem chance. Mas pode ser que eu consiga ligar pra pelo menos falar com todo mundo. Eu talvez consiga folga no dia 25.
— Ah, ia ser ótimo! Tá todo mundo com saudades.


18 de dezembro
Shoto’s POV

— Agora! — Exclamou o chefe de polícia no ponto que todos estávamos usando.
Observei enquanto os primeiros policiais derrubavam a porta da frente do armazém. Fomos recebidos, assim como no relatório da Moonlight, por capangas armados, que começaram a atirar imediatamente. Respirando fundo, ergui meu braço direito, cobrindo-os de gelo até o peito. Não duraria muito, visto que os de reação mais rápida já estavam tentando escapar, mas ganharia alguns minutos e me daria a abertura necessária para entrar no prédio. Corri pelo meio das pessoas, tocando no maior número possível de armas conforme passava para congelar o mecanismo interno, mas meu objetivo era claro.
— Ela quer fechar a missão agora, mesmo sem todas as provas. — Inclinei a cabeça levemente, confuso.
— Por quê? — Beifong suspirou, parecendo cansada.
— Porque ela achou duas crianças lá dentro.
Por mais que eu não me envolvesse nas missões infiltradas, gostava de me manter informado, especialmente em casos como o da Moonlight. Beifong e eu tínhamos ido atrás dela do outro lado do mundo especificamente para missões como essa, em que mesmo nossos melhores agentes não conseguiam se infiltrar, e essa organização de vilões já estava se tornando um problema fora de controle quando a colocamos no caso, então eu lia os relatórios com uma frequência bem maior que dos outros heróis. Quando a encontrei toda machucada no outro dia, soube imediatamente que algo estava errado, e tive que me envolver pessoalmente quando Beifong me contou o que era. Anos tinham se passado e eu não fizera parte da operação na época, mas ainda me lembrava bem do que Midoriya tinha contado sobre Eri – e de todo o processo pelo qual ela teve que passar depois de ser resgatada. Saber que havia outra criança passando por algo parecido bem embaixo do meu nariz era impossível de ignorar. O simples fato de ter demorado duas semanas para conseguir preparar essa invasão me corroeu por dentro o tempo inteiro.
Então, enquanto o objetivo geral da operação era prender o máximo possível de envolvidos, o meu papel era resgatar as crianças. Hayato e Suki, lembrei.
Passar pelos corredores era um processo lento, por mais rápido que eu corresse, porque a cada curva apareciam mais pessoas me atacando com suas Individualidades ou com armas, e eu tinha que segurá-las até alguém me alcançar ou prendê-los de forma que pudesse continuar avançando. A vantagem era que eu não precisava abrir cada porta, havia decorado o mapa no relatório de Moonlight apontando a sala onde as crianças eram mantidas.
Estava quase me arrependendo de não ter chamado Midoriya para ajudar quando finalmente alcancei o corredor que procurava. Fechando a porta, uma mulher tinha seus cabelos formando quase um casulo atrás de si, no qual eu podia ver um par de olhos verdes em pânico.
Sabendo que diálogo não me levaria a lugar nenhum, bloqueei o corredor atrás dela com uma parede de gelo.
— Olha, se não é o herói número 3. — Sua voz era puro escárnio. — Só tem um problema com esse planinho seu. Se não me deixar ir embora, eu sufoco o pirralho. E você é um herói, então não pode deixar isso acontecer, não é?
Eu conseguia ver as lágrimas escorrendo pelos olhos de Hayato e o olhar vitorioso da mulher. Queria acabar com isso o mais rápido possível.
— Na verdade, eu fiquei em quarto lugar no último ranking — respondi sem emoção. Me surpreendia como, independente de quantas vezes eu dissesse que não me importava, as pessoas continuavam usando minha colocação para tentar me abalar. Uma bela herança dos anos do meu pai na profissão. — Mas tem razão, não vou deixar você machucar o garoto.
Antes que ela pudesse reagir, cobri suas pernas com gelo e criei um feixe de chamas que cortou a parte de seu cabelo que formava o casulo. Ela gritou de dor e ódio, mas apenas aumentei a coluna de gelo para cobri-la por inteiro e andei em direção ao menino. Os fios ainda o envolviam, seu corte eliminando o controle que a mulher tinha sobre eles, mas não alterando a força e forma em que ela os havia deixado. Queimá-los seria muito arriscado enquanto Hayato ainda estivesse lá dentro, então me resignei ao caminho mais demorado e puxei uma faca de um dos bolsos do cinto.
Aos poucos, fui cortando mecha por mecha e incinerando tudo que se soltava, sem nunca parar de prestar atenção na minha prisioneira. Ainda podia ouvir os sons de luta dos outros heróis e policiais nos corredores pelos quais havia passado, mas não ouvia ninguém se aproximando de onde eu estava. Quando consegui remover cabelo o suficiente para ver seu rosto, Hayato tinha as bochechas marcadas por lágrimas.
— Su… a Suki. A Suki. — Soluçou.
— O que tem a Suki?
— L-lá dentro… sozinha, a Suki tá sozinha.
— Tudo bem, nós vamos pegar a sua irmã. Tá bom? Mas eu preciso te soltar desse cabelo primeiro.
Ele balançou a cabeça veementemente.
— A Su-Suki primeiro. Pega a Suki pri-primeiro.
Suspirei. Ele me lembrava o Midoriya quando estávamos no ensino médio, se quebrando todo para salvar alguém. Não adiantaria discutir, e a última coisa que eu queria era piorar seu desespero.
— Tudo bem. Vem aqui. — Puxei-o comigo até perto da porta, analisando a fechadura por alguns segundos.
A porta parecia de metal, e o relatório dizia que ela era grossa o bastante para não se ouvir nada através dela. Eu não podia explodi-la, não sabia se Suki estava segura do outro lado.
— Hayato, eu tenho um plano e preciso que você fique parado por um minuto.
— Co-como você s-sabe o meu nome?
— Temos uma amiga em comum — respondi apenas, cobrindo-o em uma redoma de gelo e torcendo para ser o suficiente.
Pousei a mão esquerda no metal frio, concentrando todo o calor que conseguia gerar para tentar derreter a fechadura. Limitar as chamas à minha mão não era fácil, mas eu não podia arriscar aquecer meu corpo todo e machucar as crianças. Eu sabia que o gelo ao meu redor estava derretendo, e franzi o cenho para a porta. Vai logo, pensei, sabendo que precisava que a coluna de gelo atrás de mim se mantivesse. Quando finalmente senti o metal ceder sob a minha pele, ergui o braço direito para trás, refazendo o gelo bem a tempo. O grito de ódio ressoou pelas paredes, mas a ignorei, empurrando a porta.
Lá dentro, ouvi um choro baixinho e corri para o colchão no canto. Se debatendo para sair das cobertas em que estava enrolada, encontrei Suki, e a menina parou imediatamente ao me ver, arregalando os olhos verdes como os do irmão.
— Tá tudo bem — murmurei, pegando-a sem jeito e voltando para o lado de fora. Assim que viu o rosto do irmão, ela esticou os bracinhos na direção dele.
— Ato!
— Suki! Eu to aqui.
Coloquei-a sentada encostada na parede ao meu lado e voltei a cortar o cabelo que o prendia. Quanto mais perto eu chegava dele, mais via como os fios estavam apertados, vários hematomas já se formando, além de um ou outro corte. Assim que se viu livre, Hayato pulou para abraçar a irmã, que se agarrou a ele de volta.
— Agora eu preciso levar vocês lá pra fora e pra verem um médico.
Hayato estreitou os olhos para mim.
— Pra que médico?
— Porque você tá todo machucado e vocês estão presos aqui sem cuidado há muito tempo. Vamos, não podemos demorar aqui embaixo. — Derreti a parede de gelo que nos separava do resto do corredor e voltei para me abaixar na frente dos dois. — Eu vou carregar vocês, pra garantir que vão estar seguros e chegarmos na saída mais rápido. Consegue subir nas minhas costas?
Após um segundo de hesitação, o menino assentiu, me entregando a irmã, que segurei junto ao peito, e abraçando meu pescoço. Me ergui novamente, afrouxando o cinto e puxando-o para cima e ao redor do corpo de Hayato, para prendê-lo a mim com mais firmeza. Quando fiquei satisfeito que ele não cairia tão fácil, comecei a voltar pelo caminho que havia vindo.
— Shoto! — Chamou um dos policiais. Havia vários no corredor ao qual havíamos chegado, todos prendendo alguém ou recolhendo evidências. Parei, me virando para ele, e vi a surpresa em seu rosto ao notar as crianças. Ele balançou a cabeça. — Ahn… você foi o primeiro a conseguir avançar mais, tem mais alguma coisa que a gente deva olhar lá embaixo?
— Deixei uma mulher presa em uma coluna de gelo. Cuidado, o cabelo dela é uma arma. E recolham o máximo possível de evidências na sala com a porta de metal derretida no corredor onde ela está. Tem uma equipe de primeiros socorros na rua?
— Tem, tem sim. O relatório de vocês mencionou armas de fogo, achamos melhor ter médicos por perto.
Assenti, continuando meu caminho.
— Como você sabia os nossos nomes? — Hayato murmurou baixo o bastante para que só eu ouvisse.
— Temos uma amiga em comum que queria muito salvar vocês. Ela… meio que trabalha pra mim.
— A trabalha pra você?
…? — Tive que forçar a memória por um segundo. Nós nos conhecíamos exclusivamente de maneira profissional, eu nem saberia que esse era o nome da Moonlight se não tivesse precisado assinar o contrato dela com a agência. — É, ela trabalha na minha agência.
— Tem certeza?
— Eu nunca chamo ela pelo nome de verdade, só pelo nome de heroína, demorei um pouco pra lembrar. Mas tenho certeza sim.
— Hum.

🟥🔥❄️⬜️

Conseguir que Hayato e Suki recebessem atendimento médico foi uma briga. Qualquer adulto além de mim que chegava perto de encostar em um dos dois os fazia pular de susto ou se encolher. Eu mesmo tive que limpar e medicar os machucados de Hayato, e precisei ficar com Suki no colo enquanto a médica a atendia – o que por si só foi um desafio, já que eu não sabia muito bem como segurar um bebê.
— Tem mais cobertores? — perguntei à socorrista quando ela pareceu se dar por satisfeita com a condição das crianças. Estava nevando, e eu sabia que o cobertor que haviam arranjado para eles estava longe de ser o suficiente para aguentar o frio.
— Infelizmente não. Desculpe.
Suspirei e me sentei em um banco, batendo levemente no espaço ao meu lado.
— Senta aqui, Hayato. Vou manter vocês aquecidos.
O menino obedeceu, se acomodando à minha esquerda. Ele não reclamava, mas eu podia ver os tremores percorrendo seus braços conforme ele apertava o cobertor o mais próximo possível de seu corpo. Aumentei a minha própria temperatura só o bastante para manter um círculo confortável em volta de mim e Suki se aconchegou no meu peito. Não pude deixar de me perguntar o que aconteceria com eles agora.
— Hayato! Suki! — Exclamou uma voz desconhecida vinda da direção onde estavam os carros de polícia.
Virando a cabeça, pude ver uma mulher que eu tinha certeza nunca ter visto antes, mas que era estranhamente familiar, correndo ao redor e claramente procurando as crianças. Hayato se encolheu atrás do meu braço, usando o cobertor para se esconder, e Suki apertou os bracinhos ao redor do meu pescoço.
Mesmo assim, a mulher nos viu e veio correndo na nossa direção, os cabelos vermelhos balançando. Quando ela chegou perto o bastante para que eu visse detalhes de seu rosto, finalmente entendi com quem ela parecia. Kirishima?
— Shoto-san? Ah, isso explica o gelo nos corredores.
— Moonlight? — perguntei cauteloso e ela sorriu de leve, virando de costas e erguendo parcialmente a blusa.
Entre as escápulas, bem na linha da coluna, era visível uma tatuagem de lua crescente com alguns arabescos. Senti Hayato parar de se esconder atrás de mim.
— Desculpa ter usado essa cara, eu só precisava mudar pra passar despercebida. — explicou, ajeitando a roupa e voltando a nos encarar.
? — Hayato chamou baixinho e ela imediatamente se abaixou para ficar na altura dele.
— Como você tá, querido?
— Acabou? A gente não vai mais ter que voltar pra lá?
— Nunca mais. Se depender de mim, vocês nunca mais vão passar por nada nem parecido, tá bom?
Hesitando por um segundo, ele assentiu e se jogou no colo dela, abraçando seu pescoço. pareceu surpresa por um momento antes de segurá-lo de volta, correndo uma mão pelas costas dele. Seus olhos – agora de um vermelho tão familiar – encontraram os meus, e vi quando ela disse sem produzir som algum:
Obrigada.
Assenti em resposta. Poderíamos conversar mais sobre isso quando as crianças não estivessem presentes.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔

’s POV

Quando a confusão se instaurou, eu demorei para entender o que estava acontecendo. E mesmo quando comecei a entender, eu demorei a acreditar. Beifong não tinha dado sinal de vida desde o meu chilique em seu escritório, eu já estava pronta pra ter que explodir parte do armazém e fugir com as crianças para outro país. Ficava feliz de isso não ter sido necessário.
Ser presa no meio dos outros capangas, apesar de uma experiência desagradável, já era quase rotina pra mim. Apenas passei a olhar em volta, procurando o policial que Beifong havia mandado procurar caso isso acontecesse. Eu não sabia se ele saberia quem eu era, mas parecia que sim, pois logo fui puxada pelo braço – brutalmente, diga-se de passagem.
— Eu cuido desse aqui. — Garantiu o homem.
O outro policial apenas assentiu, me deixando ir e parecendo aliviado de ter uma pessoa a menos sob sua responsabilidade. Assim que me puxou para longe o bastante, onde só haviam policiais ao nosso redor, me manifestei:
— Eu já fui esmagado pela Bandida Cega.
— E quando foi isso?
— Sob a lua crescente.
Seu aperto relaxou imediatamente, mas ele continuou me guiando até um dos carros e me empurrou para o banco de trás.
— Só não sai com nenhuma cara que reconheçam, Moonlight-san. A chave… — sorri, entregando as algemas para ele.
— Não precisa, mas obrigada.
Ele balançou a cabeça, meio incrédulo.
— Não me surpreende que você trabalhe pra Beifong. Dá uns minutos antes de sair.
— Pode deixar.
Ele fechou a porta e pude notar que as janelas eram escuras. Ótimo, assim poderia mudar sem ser vista. Não posso dizer que obedeci ao pedido de alguns minutos, estava preocupada demais com as crianças. Tanto que nem pensei muito em qual aparência assumir, apenas fiz uma versão feminina do primeiro herói que me passou pela cabeça e sai correndo, chamando as crianças. Jamais esperaria encontrá-los agarrados a Shoto.
— Você trabalha pra Beifong, mas a agência ainda é minha. Especialmente quando trazemos heróis de fora do Japão, gosto de saber o que acontece.
Será que tinha sido ele que convenceu a Beifong a autorizar a operação? Não, ele era o chefe, ele mesmo devia ter autorizado.
E ver as crianças parecendo confortáveis com ele me fazia acreditar que tinha sido ele a resgatá-los. Não havia sensação melhor que saber que eles estavam finalmente livres daquela situação, e eu tive que lutar muito contra as lágrimas que encheram meus olhos quando Hayato me abraçou.
Após todo o caos do resgate, não demorou para que Suki e Hayato dormissem. Shoto não saiu de perto deles, garantindo que estivessem aquecidos mesmo na neve, e eu me recusava a tirar os olhos dos dois, mal acreditando que finalmente estavam livres.
— Obrigada outra vez, Shoto-san — murmurei. — Foi você que autorizou isso, não foi?
Ele assentiu.
— No momento que Beifong me falou das crianças. Queria ter vindo antes, mas era uma operação em escala muito grande pra organizar mais rápido.
Balancei a cabeça negativamente.
— Vocês vieram e me ajudaram a salvar os dois. Isso que importa. — Parei por um momento, acariciando os cabelos acobreados de Suki, e suspirei. — Mas ainda me preocupo com o que vai acontecer com eles agora. Takahashi matou os pais deles, não sei se eles têm mais alguma família, e mesmo que tenham, pode ser que demore até encontrar quem são. Não quero que eles acabem em um orfanato ou sejam separados. Ou pior, sejam pegos de volta.
Shoto encarou as crianças por alguns instantes.
— Já volto. — E saiu andando na direção dos policiais.
Franzi o cenho, sem nem ter tempo de perguntar onde ele estava indo, e me preocupei das crianças nesse frio com apenas um cobertor. Mas não precisei me preocupar por muito tempo, pois menos de cinco minutos depois pude ver Shoto voltando com o chefe de polícia. Eles conversavam sobre algo que eu não consegui identificar a princípio.
— … ter que entrar em contato com um assistente social. Isso não segue o protocolo.
— Não sabemos se prendemos todos hoje, não sabemos nem quantas pessoas estavam envolvidas. Até termos certeza, as crianças seguem correndo risco, não podem simplesmente ser devolvidas pro sistema. Que lugar melhor pra eles ficarem do que comigo? Além de tudo, eu moro na rota de patrulha do Deku, praticamente não tem lugar mais seguro no Japão inteiro pra deixar eles.
— Mas Shoto-san, tem certeza? — O policial parecia, além de muito confuso, hesitante com a ideia. Não podia julgá-lo, Shoto era um herói muito popular, mas lidar com crianças na rua e ter duas em casa eram coisas bem diferentes.
— Tenho. A não ser que você tenha ideia melhor.
— Ahn não, não, senhor. Vou colocar no relatório então.
— Ótimo. E, por favor, quero o mínimo possível de pessoas sabendo disso. — O homem mais velho curvou a cabeça primeiro para Shoto e depois para mim e deu meia volta, se afastando rapidamente. — Resolvido, pelo menos por enquanto.
Eu o encarava em choque. De onde saiu esse homem? Autorizar a operação para resgatar as crianças era uma coisa – como heróis profissionais, era isso que fazíamos –, mas levá-los pra casa? Tudo bem que eu estava pronta pra fazer a mesma coisa, com ou sem autorização, mas era diferente. Eu tinha experiência com crianças, sabia lidar com elas. Shoto mal sabia lidar com adultos.
— Você… você vai levar eles pra sua casa?
Ele inclinou a cabeça de lado. Ah, puta que pariu, além de tudo ele era adorável.
— Você acabou de dizer que estava preocupada com o que aconteceria com eles agora.
— Eu não tô reclamando, não! — Garanti, arregalando os olhos de leve. — Só fiquei um pouco chocada com a sua atitude, só isso.
— Hum.
Depois disso não conversamos muito mais, havia muito a fazer. Ajudei Shoto a colocar as crianças no carro da agência e os observei se afastando até não poder mais vê-los. Hora de voltar ao trabalho, a parte burocrática me aguardava.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔

25 de dezembro

Mordi o lábio após desligar o telefone. Era pouco depois de meio dia, o que significava meia noite pra minha família, e, graças à intervenção de Shoto, eu realmente tinha conseguido não estar trabalhando hoje, então tinha participado do natal, mesmo que virtualmente. Fazia exatamente uma semana que Hayato e Suki tinham sido resgatados, mas eu fiquei tão atolada de trabalho entre burocracias, verificar as evidências colhidas, dar depoimentos e ajudar a solidificar o caso contra todas as pessoas que haviam sido presas que nem tive tempo de ir atrás de Shoto para perguntar deles.
Eu havia ficado muito admirada com a atitude dele, mas também estava preocupada. Eu sabia que ele não tinha muito tempo livre, e não achava que ele tivesse muita ideia de como cuidar de crianças.
Num impulso, me troquei, peguei minha bolsa e saí rumo ao centro comercial. Ainda havia bastante coisa aberta, para a minha sorte, então consegui tudo o que precisava. Como estava cheia de sacolas, achei melhor pegar um táxi, passando o endereço que havia encontrado online, e logo estava parando em frente à grande casa. Pude ver o taxista me encarando surpreso pelo retrovisor, mas ele só perguntou se eu queria ajuda com as sacolas. Recusei e agradeci, pagando pela corrida e torcendo para estar no lugar certo. Prendendo a respiração, toquei a campainha.
Alguns segundos depois, a porta foi aberta por um Shoto muito surpreso.
— Moonlight?
Ele estava com cara de cansaço, os cabelos bagunçados, descalço e com a blusa toda amarrotada. E o desgraçado tava lindo. Como pode? Em seu colo, estava uma Suki igualmente bagunçada. Eu podia ver manchas de comida na roupa, que estava toda torta, e seus cabelos estavam espetados. Pelo menos ele parecia mais certo de como segurar um bebê. Sorri envergonhada.
— Oi, Shoto-san. Desculpa aparecer assim na sua casa de repente. — Suki estendeu um dos bracinhos na minha direção e meu sorriso se alargou conforme segurei a mãozinha dela. Mesmo que só uma semana houvesse se passado, era claro que ela já estava ganhando peso e parecendo mais saudável. — Eu vim ver essa princesa e o Hayato. Teria ligado pra perguntar, mas não tenho o seu telefone e consegui seu endereço na internet.
— Ahn… — ele piscou algumas vezes, parecendo processar a minha presença. Então deu um passo para o lado — Tudo bem. Quer entrar?
— Obrigada.
Tive que colocar todas as sacolas no chão para conseguir tirar os sapatos e o casaco.
— Quer ajuda? São muitas sacolas.
— Ah, não precisa, obrigada. São coisas pras crianças. Eu… talvez tenha me empolgado um pouco nas compras pra eles. — Senti minhas bochechas esquentarem.
— Hum. O Hayato tá na cozinha. — Shoto parou então, parecendo desconfortável. — Tá… tá um pouco bagunçado, espero que não se importe.
Abanei uma mão, rindo de leve.
— É uma casa com crianças, eu ficaria surpresa se você tivesse conseguido evitar a bagunça.
A casa era bonita, minimalista e decorada em um estilo japonês clássico. Mesmo assim, havia várias fotografias nas paredes e, para minha completa surpresa, uma grande árvore de natal.
— Considerando o que eu comprei, acho que podemos deixar as sacolas debaixo da sua árvore.
— Huh? — Ele parou, confuso por um instante. Apontei para o objeto coberto de pisca-piscas e ele suspirou. — Eu esqueço que isso tá aí.
— Como você esquece uma árvore de natal no meio da sua própria sala?
— O Midoriya e a mãe dele decoram a minha casa todos os anos. Eles dizem que preciso de mais espírito natalino. — Sorri e deixei as sacolas no chão, em seguida indo até a porta que Shoto me indicava.
— Oi Hayato.
O menino se virou, surpreso ao ouvir minha voz. Ele parecia quase tão bagunçado quanto Shoto. Ao seu redor, a cozinha estava um caos. Tigelas e panelas sujas, diferentes ingredientes espalhados pelas bancadas e o que pareciam tentativas falhas de comida na pia.
? — Me abaixei para ficar da altura dele, passando a mão por seus cabelos.
— Desculpa não ter vindo te ver antes, acabei não tendo tempo. Como você tá?
— Eu… eu to bem.
— E posso perguntar o que vocês estavam fazendo?
Hayato me lançou um olhar exasperado.
— Shoto tava tentando fazer almoço pra gente. — Não consegui segurar a risada, especialmente com a ênfase que ele deu em “tentando”. Vi Shoto franzir o cenho de leve.
— Tentando, é? E tava dando certo?
— Não muito — admitiu o homem, parecendo envergonhado.
— E que tal se eu ajudar? Talvez a gente consiga fazer alguma coisa gostosa e que não demore muito. — Parei então, lembrando que aquela era a casa de alguém com quem eu não tinha intimidade pra simplesmente chegar e ir fazendo as coisas. Me virei para Shoto. — Se você não se importar, é claro.
— Não me importo, mas você também não precisa se dar ao trabalho. Veio visitá-los, não trabalhar.
Balancei uma mão para ele, já prendendo o cabelo em um rabo de cavalo e erguendo as mangas.
— Não é trabalho nenhum, não se preocupe. Além disso, vocês parecem que realmente precisam da ajuda, e é o mínimo que eu posso fazer.
— Tem certeza?
— Tenho. Podemos abrir os presentes que eu trouxe depois de comer. Quer me ajudar, Hayato?
Ele assentiu e puxei um dos bancos da ilha para perto, ajudando-o a subir. Ele também parecia melhor, embora seus hematomas mais recentes ainda fossem visíveis. Rapidamente abri espaço, deixando com Hayato os utensílios que poderíamos precisar e acumulando o resto na pia.
— Ok, deixa eu ver… — murmurei enquanto analisava o conteúdo da geladeira. Não tinha muita coisa com que eu pudesse trabalhar, mas encontrei um peixe, cogumelos secos e alguns legumes. — Perfeito. — Movida pela curiosidade, não consegui deixar de comentar: — Shoto-san, pra alguém que não tem costume de cozinhar, sua cozinha é muito bem equipada.
— Minha irmã, Fuyumi, gosta de fazer refeições em família. E o Bakugo frequentemente cozinha quando vem aqui.
Franzi o cenho. Eu conhecia aquele nome. De onde conhecia aquele nome? Quase engasguei de surpresa quando lembrei, parando o que estava fazendo imediatamente.
— Peraí. Bakugo que você diz é o Dynamight? — Shoto assentiu. — Ele cozinha?! E nunca explodiu sua casa?
— Ele grita bastante no processo, mas cozinha bem. Passamos a semana comendo as coisas que ele e Fuyumi deixaram prontas.
— Eu não sei se fico mais chocada de descobrir que ele cozinha ou de saber que a mídia nunca descobriu isso. — Balancei a cabeça rindo.
Posicionei tudo na bancada, instruindo Hayato a lavar os legumes enquanto eu preparava o peixe, perguntando a Shoto sobre vários temperos e utensílios conforme avançava na receita. Não muito depois, ele começou a limpar a bagunça em que tinha deixado a cozinha antes de eu chegar. Ri baixinho ao vê-lo tentar equilibrar Suki no colo com um braço só para lavar a louça.
— Agora você esfrega de levinho pra espalhar, assim. — Expliquei para o menino ao meu lado, vendo-o repetir meu movimento com exatidão. — Isso mesmo. Consegue espalhar tudo sozinho? — Ele assentiu, concentrado. Limpei as mãos em um pano que havia deixado por perto, indo até nosso desajeitado anfitrião.
— Shoto-san? — Ele virou-se para mim, o cenho franzido. Tive que conter a risada. Ele era uma figura pública normalmente tão séria. — Posso fazer uma sugestão?
Apontei para Suki e ele suspirou.
— Eu to fazendo errado, não to? Fuyumi me explicou, mas mesmo assim…
— Não, na verdade você tá indo muito bem. E esse tipo de coisa é questão de prática mesmo. Mas talvez se você colocar ela sentada na bancada na sua frente, fique mais fácil.
Ele não pareceu confiar muito no que eu disse.
— Mas ela vai cair.
— Não, não vai. Claro, você não pode soltar ela aí e sair andando, tem que ficar perto e prestar atenção, mas a Suki já consegue ficar sentada sozinha, e ela não é de se jogar dos lugares. Além disso, se você ainda não tem um cadeirão pra ela, pode fazer uma contenção de gelo que a impeça de cair.
Cuidadosamente, ele fez o que eu disse, colocando-a no espaço vazio à sua frente, mas eu conseguia ver quão tenso ele ainda estava.
— Eu fiz isso algumas vezes com ela já, pra poder dar banho nela no armazém. — Expliquei. — Pode confiar.
Ele acabou fazendo uma barra de gelo que a mantinha no lugar sem apertá-la, mas pelo menos agora não parecia tão desconfiado quanto antes. Suki fez aqueles barulhinhos de bebê, explorando o gelo com os dedinhos como se fosse um brinquedo brilhante. Shoto colocou uma espátula de borracha limpa do lado dela, com a qual ela estivera brincando até pouco tempo atrás, e a menina se entreteve por conta própria.
— Huh. — Observou enquanto ela balançava os pés, mas não era nem de longe o bastante para derrubá-la. — Como sabia o que fazer?
— Irmão mais novo, muitos primos, uma sobrinha, minha mãe trabalha com crianças, eu mesma já trabalhei com eles antes de ser uma heroína. Como eu disse, é prática. — Dei de ombros, voltando para perto de Hayato. — Olha só, ficou perfeito. Agora só precisamos colocar um pouquinho mais de azeite, cobrir com alumínio e colocar no forno. Aí daqui uns 20 minutos tá pronto.
Terminamos de cozinhar rapidamente, e acabei pegando Suki para brincar no chão enquanto Shoto terminava a louça. Me distraí e, quando notei, ele também já havia posto a mesa. Esta, assim como a decoração da sala, era em estilo japonês clássico, então podíamos todos sentar no chão. Era melhor, assim não precisava me preocupar com as crianças em cadeiras altas demais para eles, e Suki não precisaria de um cadeirão. Coloquei a menina ao meu lado, picando a comida para ela e entregando-lhe uma colher. Senti Shoto me observar com curiosidade, mas ele não disse nada.
Na verdade, a maior parte da nossa refeição foi feita em silêncio. Eu e Shoto mal nos conhecíamos, e os assuntos que tínhamos em comum – que eram trabalho e as crianças – não eram muito bons para se discutir à mesa; Hayato, assim como Shoto, falava pouco, e estava muito ocupado comendo para prestar atenção em nós, e Suki nem falava ainda. Mesmo assim, pude sentir Shoto observando com atenção todas as minhas interações com Suki, desde a forma como eu cortava sua comida até a forma como falava com ela. Eu só não conseguia decidir se ele estava desconfiado ou tentando aprender, sua expressão neutra tornando muito difícil saber o que ele pensava.
— Agora o que vocês acham de ver o que eu trouxe? — perguntei quando terminamos de comer. Hayato levantou os olhos pra mim em um questionamento silencioso, em seguida para Shoto. — É Natal, então eu trouxe alguns presentes pra vocês. — Expliquei. Não podia culpá-lo por ficar tenso com surpresas. Imediatamente vi seus ombros relaxarem outra vez. — Estão lá na árvore.
— Posso? — A expressão de Shoto suavizou com o pedido e ele assentiu. Hayato se levantou, mas esperou na porta até eu levantar com Suki no colo para segui-lo.
Sentei no chão de frente para a árvore, colocando a menina ao meu lado e puxando uma das sacolas.
— Feliz natal, Hayato.
Ele me observou por alguns instantes, uma tristeza profunda tingindo os olhos verdes.
— Ato? — Chamou Suki engatinhando até ele. O menino balançou a cabeça, oferecendo um pequeno sorriso pra ela, que sorriu de volta, mais gengiva que dentes.
— Feliz natal, .
Balancei uma mão no ar.
— Pode me chamar só de . No meu país, a gente só chama as pessoas pelo nome inteiro assim quando tá bravo com elas. Sei que aqui no Japão é diferente, mas eu ainda acho muito estranho quando me chamam pelo nome todo.
— Feliz natal… . — Tentou outra vez e sorri.
Ele então se pôs a abrir cada sacola que eu lhe entregava. Havia roupas, brinquedos e livros, tanto para ele quanto para Suki, além de algumas guloseimas, chupetas e tudo que me ocorreu comprar. Eu saí comprando quase tudo que achava que crianças das idades deles deveriam ter, pra ser muito honesta. Eles haviam passado 6 meses sem nada, e talvez eu estivesse tentando compensar pelo menos o mínimo disso agora que eles estavam aqui fora outra vez.
Peguei a última sacola e me levantei, indo até Shoto.
— E esse último é pra você.
— Pra mim? — perguntou incrédulo e eu assenti.
— Era o mínimo que eu podia fazer, ainda mais aparecendo na sua porta assim sem aviso.
— Mas Moonlight…
Balancei a cabeça negativamente.
— O que eu disse pro Hayato vale pra você também, pelo menos fora do trabalho. Pode me chamar de . Ou de , se preferir. Mas não precisa ficar me chamando pelo nome de heroína aqui.
. — Testou e não pude deixar de sorrir, encorajando-o. Eram raras as pessoas aqui no Japão que eu conseguia convencer tão facilmente a me chamar pelo apelido. — Você não precisava ter trazido um presente. Eu também não tenho nada pra você.
— Você já me deu o melhor presente possível com tudo que tem feito pelos dois. De verdade. Saber que eles estão seguros aqui com você era tudo que eu poderia querer, Shoto-san.
— Shoto. — Interrompeu ele e inclinei minha cabeça para o lado em dúvida. — Só Shoto. Você acabou de me pedir pra usar seu apelido, não precisa do honorífico.
— Ok, Shoto. — Sorri, colocando a sacola em suas mãos. — Aceita, por favor. Se te deixa menos preocupado, o presente é comida.
Ele não respondeu, mas aceitou a sacola, verificando o conteúdo. Senti um toque na minha panturrilha e me virei para ver Suki puxando alguns dos brinquedos que havia acabado de abrir para perto de mim, incluindo um ouriço de pelúcia ao qual estava agarrada.
— Você quer brincar, pequena? — perguntei e ela estendeu um dos objetos para mim. Sorrindo, me sentei no chão outra vez.

🌖🌗🌘🌑🌒🌓🌔

— Aqui — murmurou Shoto enquanto segurava a porta para mim.
Passei com cuidado para não fazer nenhum movimento brusco e acordar Suki, que dormia tranquilamente em meus braços ainda agarrada a seu novo bichinho de pelúcia. O quarto havia claramente sido montado às pressas, mas pelo menos havia os básicos, como um berço. A pousei com cuidado dentro do mesmo, ajeitando a coberta e o bichinho antes de me afastar na ponta dos pés. Shoto não fechou a porta quando saímos, e notei que Hayato se ajeitou no chão da sala para um ângulo do qual conseguisse ficar de olho na irmã.
Eu já estava ali havia horas. Ficara brincando com Suki e Hayato – bom, na verdade mais com Suki. Hayato não parecia muito interessado em brincar ainda, embora houvesse aberto todos os presentes e agradecido por eles, mas eu não o culpava. O coitadinho tinha sobrevivido a uma experiência horrível e traumática e, diferente da irmã, já tinha idade o suficiente para entender os horrores pelo que tinha passado. Ia precisar de muito tempo, amor e terapia pra que ele pudesse ter um comportamento mais parecido com o de uma criança comum.
Shoto também tinha acabado no chão conosco, embora ele parecesse bem perdido. Ele tinha boa vontade, isso eu não podia negar, e ouvia com atenção as instruções que eu e Hayato dávamos a ele sobre o que Suki queria.
Eventualmente, porém, ela se cansou, se aconchegando em meu colo e adormecendo. Tomei aquilo como minha deixa para ir para casa.
— Eu te acompanho.
— Tchau, Hayato.
— Tchau, . — Ele acenou timidamente quando eu passei, sem sair de sua posição quase de guarda da irmã.
Quando paramos para eu colocar meus sapatos e pegar meu casaco, Shoto parou.
— Obrigado — disse.
— Pelo quê?
— Por ter vindo hoje. Pelos presentes. Por me ajudar com eles. — Ele suspirou, correndo uma das mãos pelo cabelo e apoiando as costas na parede atrás de si. — Crianças são muito mais complicadas do que eu imaginava, e com toda a correria, eu mal lembrei que hoje era natal até você aparecer.
— Não tem por que agradecer. Eu fiquei muito feliz de ver os dois, e me diverti nesse natal improvisado.
— Não, de verdade. Eu passei a semana sendo um desastre. A única coisa que eu sei fazer direito é garantir que eles não se machuquem.
Não consegui segurar a risada.
— Eu já te disse, é prática. Você tá se saindo muito bem pra quem só tá cuidando de crianças há uma semana. — Mordi o lábio, ponderando por um segundo, então peguei o bloquinho e a caneta que carregava sempre dentro da bolsa. — Mesmo assim, se achar que precisa de socorro de novo, ou só pra eu não aparecer de surpresa da próxima. Ou pra qualquer coisa que eles precisarem, qualquer coisa mesmo. Esse é meu telefone. — Entreguei o papel para ele, que assentiu e guardou no bolso da calça.
— Obrigado mais uma vez.
— Foi um prazer.
Shoto pegou meu sobretudo, que estava pendurado atrás dele, e me ajudou a colocar. Que cavalheiro. Então abriu a porta, verificando que o táxi que eu havia chamado já estava mesmo aguardando na porta. Assim que coloquei os dois pés do lado de fora, me virei ao ouvir sua voz.
— Feliz Natal, .
— Feliz Natal, Shoto.
Então me virei e voltei para casa.




Continua...


Nota da autora: Gente, o que é o Shoto, na moral? Ele resgatando as crianças 🥰 E esse primeiro momento família dos quatro? Eu amo muito, foi uma das primeiras cenas que apareceram na minha cabeça.
Em breve vem o próximo!


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